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E se mudássemos o fora de jogo

Vítor Frade, o treinador, professor, pensador e filósofo a quem devemos a periodização tática e, por consequência, muito da evolução qualitativa do futebol português que teve José Mourinho como porta-estandarte, descreve a regra do fora do jogo como A LEI, parte fundamental do ADN do jogo que hoje conhecemos. Não posso concordar mais. Foi ordem no caos e a forma como o jogo se desenvolveu partiu muitas vezes da relação com essa linha virtual, desenhada hoje com régua, esquadro e perspetiva no pequeno ecrã, que define os jogadores que podem ter contacto de forma legal com a bola perto da baliza adversária.

 

O fora de jogo surgiu para acabar com a anarquia, a imensidão de oportunidades que surgiam da individualidade ou das abordagens em grupo que hoje até associamos mais ao râguebi e que resultavam numa imensidão de golos e em encontros completamente irracionais e sem fio condutor. O que não deixa de ser paradoxal, perante à forma como hoje associamos espetáculo ao número de remates certeiros. Na primeira regra, escrita em 1863, tinham de estar quatro jogadores rivais entre o avançado e linha de baliza para que a finalização fosse considerada válida. Em 1866, reduziu-se para três. Entretanto, perante as visíveis dificuldades dos ataques em se superiorizarem às defesas, o fora de jogo começou a ser considerado, em 1907, apenas no meio-campo defensivo. No entanto, apesar de tantas alterações, continuava com problemas. Um dos dois defesas avançava estrategicamente no momento certo a fim de colocar o avançado em offside e a armadilha mantinha os encontros excessivamente defensivos e monótonos. Só em 1925 foi declarada a mudança definitiva, a diminuição de três para dois defesas, guarda-redes incluído. O risco aumentara e a última linha das equipas estava obrigada a recuar para garantir segurança.

 

Com o VAR, o benefício do ataque em situações de dúvida desapareceu, mesmo que questões sobre o frame certo e o momento do passe, apesar de toda a definição do 4K, permaneçam. Entretanto, trabalha-se numa ideia de fora de jogo total, ou seja, de invalidar lances apenas quando não há sobreposição corporal, nesse corte longitudinal na imagem, entre avançado e penúltimo defesa. Ainda se encontra em testes e, como tal, por implementar.

 

Entretanto, o futebol não é o mesmo de 1925. A evolução não foi apenas tecnológica, com vídeo-arbitragem, chips na bola e foras de jogo semiautomáticos, já que o treino, a medicina e a nutrição melhoraram exponencialmente, e os próprios futebolistas são mais profissionais, ainda que nem sempre os exemplos que se apregoa. A partir de 1974, o pressing tornou-se parte integrante do jogo até assumir a dimensão asfixiante que tem hoje. A estratégia foi ganhando cada maior dimensão, o espaço começou a comprimir e a destruir posições, como o número 10, hoje em vias de extinção, também por força de linhas defensivas muito próximas do meio-campo, que continua a servir de guarida a quem quer escapar ao levantar da bandeirola por parte do auxiliar. Ou, quando não o faz, à correção que chega pelo auricular ao juiz da partida.

 

Se a linha de fora de jogo é o que distingue os melhores dos outros, porque são estes os mais capazes de reagir com sucesso à falta de tempo e espaço para a tomada de decisão, a verdade é que os heróis, artistas plásticos e rockstars de outros tempos, como Diego Maradona, Roberto Baggio, Zico, Michael Laudrup, Michel Platini, entre tantos outros, deram o seu lugar a meros funcionários de uma cadeia de produção, que garantem, em gestos rotineiros e repetitivos, a qualidade do produto final. Claro que é uma caricatura, porém quantas vezes estas não se aproximam da realidade?

 

O espaço onde se criavam verdadeiras obras de arte já não existe. Ainda se procuraram outros locais, sobretudo sobre as faixas, para exilar estes criativos, mas a necessidade de incorporar desequilibradores mais capazes de ultrapassar, em velocidade e em drible, blocos tão fechados acabou por retirar-lhes o tapete por baixo dos pés.

 

Os nossos filhos já não consomem futebol como nós. Também não veem uma partida da mesma forma. O meu mais novo, aqui há um par de anos, ainda chegou a parar quase tudo com os jogos do Liverpool muito por causa do seu puto Curtis Jones – vá-se lá saber porquê – da mesma forma que para mim era quase cerimonial esperar pela entrada de Maradona em campo e segui-lo com os olhos por todo o lado. Hoje, não o vejo a ter atenção a um jogo completo. Nem ele nem o irmão ficam vidrados à frente de uma televisão, há sempre milhares de coisas a acontecer ao mesmo tempo que ganham prioridade na distribuição da sua atenção. Mas também a probabilidade de assistirem a um Golo do Século é demasiado pequena, porque já não há jogadores como esses. E os que ainda há estão quase a deixar-nos órfãos da sua magia.

 

Olhamos para os 110 metros de comprimento sobre os 75 de largura de um campo de futebol e parece impossível que não haja espaço. Mas ele está, sobretudo, onde ninguém pode jogar: para lá da linha de fora de jogo.

 

Não me interpretem mal. Se este fosse extinto pouco separaria o futebol da abordagem de um jogo de basquetebol, com a bola a sobrevoar a área e com a grande parte dos jogadores aí concentrados. Voltaríamos ao caos. Eventualmente, o jogo passaria a chuveirinho para perto da baliza e golos marcados ao trambolhão no coração da área, pelo meio de verdadeiras florestas de pernas. No entanto, mais uma vez, se há forma de o jogo evoluir é precisamente por aí. Não há mesmo nada que se possa fazer no sentido de aumentar o espaço jogável?

 

Talvez seja solução temporária, porque o lado estratégico e as dimensões física e atlética não vão parar de aumentar, no entanto, será assim tão descabido fazer baixar a linha do fora de jogo para lá do meio-campo, de forma a obrigar as equipas a distribuir os setores por uma maior dimensão do terreno e, com isso, criar-se verdadeiro espaço entre linhas? Talvez valha a pena a pensar nisso. Em nome dos artistas de amanhã.

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